Quem disse que moreno não pode fazer lasanha?
O "esquerdomacho da lasanha" como evidência de que todo mundo é potencial vítima de seita
Vou contar uma história de dois capítulos, baseada em fatos reais.
Capítulo 1: Em dezembro de 2023, um homem postou no X-Antigo-Twitter um vídeo fazendo lasanha.
Capítulo 2: Dias depois, o homem sofreu tantos ataques que excluiu a própria conta.
Fim. Desafio: preencha a lacuna entre os dois capítulos.
Quem não acompanhou esse circo todo talvez pense que eu estou propositalmente omitindo informações dessa história. “Tá, mas o que tinha na lasanha? A massa era em forma de suástica? O molho era transfóbico? O homem roubou a lasanha de uma comunidade pobre?”
Nada disso. Entre um acontecimento e outro, não há nada de mais. Mas há algo.
Antes de analisar essa história, vamos falar um pouco sobre comportamento humano.
O conceito de zeitgeist (do alemão, “o espírito do tempo”) ilustra a vibe do momento na cultura. É o conjunto de regras, a lista de coisas que são desejáveis, aceitáveis, indesejáveis e inaceitáveis. Estar dentro do zeitgeist é importante para que tenhamos acesso a reforçadores sociais: “recompensas” que os outros nos dão quando agimos “certo”, conforme o esperado; essas recompensas são elogios, atenção, amizades, parceiros sexuais, entre outras. É poder fazer parte do grande grupo. É o ✨pertencimento✨.
Para pertencer, basta seguir o zeitgeist. Fácil, né? Fácil nada: Com O Advento Da Globalização, a internet na palma da mão acelera nossas interações, e o zeitgeist muda muito rápido. Modas duram um mês, e memes duram dois dias. O “assunto do momento” está constantemente desatualizado. E as regras de comportamento também.
Na época do Temido governo Temer, a “estética Fora Temer” ditava alguns comportamentos esperados: problematizar bastante, acolher todo mundo, celebrar o amor. Com tudo dando errado e nada do vampirão indo pra Fora, ficamos mais desesperançosos e cínicos. Logo, problematizar ficou chato, ser good vibes ficou insuportável, e o novo negócio era o deboche.
Esses dois padrões se reinventam com novas roupas a cada ano (ou a cada trimestre, ultimamente), mas são uma estrutura bem frequente. Ora são bem-aventurados os mansos e pacíficos porque herdarão a terra, ora é descolado zombar até a própria mãe.
Em zeitgeists tão rápidos, contraditórios e cheios de informação, fica difícil de acompanhar. Naturalmente, muita gente se sente insegura. Sabe que precisa acompanhar, mas não sabe como. O que eu devo dizer? Que tipo de termo é aceitável? E, principalmente, como devo reagir diante do que vejo?


Uma das principais formas de se aprender novos comportamentos é a imitação. Usamos ela para aprender a falar, a brincar, a jogar bola... e a reagir. É normal que uma pessoa observe as reações de quem está ao seu redor para copiá-las.
Imagine: você está numa reunião no trabalho. Um colega faz uma piada engraçada, mas muito suja. Antes de rir, é recomendável observar a reação do chefe e dos outros colegas. Se eles riem, você ri junto. Se eles reprovam, você finge que aquilo é sem graça e absurdo. Todo grupo de pessoas está sujeito a essa dinâmica.
Porém, a internet é um grupo gigantesco, e cheio de gente insegura observando a reação dos Chefes pra poder imitar. Os Chefes da Internet não pagam seu salário, mas são “contas grandes”, personalidades com muitos seguidores e influência.
Se um Chefe da Internet dá um quote-retweet amarrotando alguém que fez um comentário machista, muita gente vai fazer o mesmo. Por um lado, isso é bom! Significa mais gente com postura antimachista, e o autor do comentário aprendendo a virar gente.
Por outro lado, em muita dessa gente, é uma “postura antimachista” esvaziada, que precisa de palavras-chave (ou situações-chave) para ser ativada. Parece haver uma dificuldade em compreender o que realmente é ou não é cabível de amarrotamento. Assim surge o fenômeno (já cooptado pela extrema-direita pra desqualificar a luta social) conhecido como “militou errado”.
O “militou errado”, de forma mais ampla, é a extrapolação da regra social. Se eu não entendo por que estou reagindo, não saberei reagir adequadamente quando não tiver um Chefe me conduzindo. Por isso, acontecem situações como a abaixo:
Esse é o exemplo de uma pessoa — desculpem — muito burra. Provavelmente, a pessoa aprendeu, imitando de forma vazia os Chefes, que devemos valorizar o Brasil antes da Europa, e que brancos não devem ser injustamente favorecidos em relação a negros. Essas informações estão corretas. Mas, se eu não entendo as nuances das coisas, eu extrapolo as informações que aprendi e falo uma merda dessas.
Esse tanto de gente insegura e confusa com o zeitgeist, imitando superficialmente e extrapolando as regras, gera o famoso efeito manada. Um grande grupo agindo e reagindo da mesma forma, sem pensar muito no que está fazendo, sem considerar as reais motivações e consequências de cada ação.
E a próxima parada desse ônibus de bosta é na Estação Dogpiling. Todos nós já vimos ocorrências de dogpiling, ou linchamento virtual: um grupo de pessoas se junta para atacar uma vítima. É sempre ruim? Não. Funciona muito bem pra desestabilizar o Elon Musk.
O problema é quando o linchamento virtual acontece combinado à extrapolação das regras. Quando menos se espera, uma multidão com tochas está gritando à porta de alguém sem motivo plausível.
O que acontece é que a multidão com tochas aprende algumas máximas bem reducionistas e as aplica indiscriminadamente. Por exemplo:
“homem = ruim”
“homem de esquerda =
bom?pior ainda! só são de esquerda pra comer mulher”“homem que se engaja em comportamentos tradicionalmente femininos = a mais vil criatura da Terra”
Com isso, basta um desconhecido — do qual não se conhece as afiliações políticas, comportamentos passados ou opiniões atuais — postar um vídeo cozinhando uma lasanha. Um comportamento normal, inofensivo, é interpretado como vilania, como uma estratégia maligna para manipular mulheres e talvez gays, e assim roubar toda a atenção da internet pra si! Muahaha!
E hoje, como tudo é virtual, a multidão com tochas vira gorilas com teclado, que disparam ataques desproporcionais a um desconhecido que, em suma, não fez nada.
Sua avó entenderia por que você xingou o homem da lasanha?
Acredito que nem os próprios gorilas entendem. O que me lembra de um famoso experimento com macacos.
Numa sala há cinco macacos, um cacho de bananas pendurado no teto, e uma escada logo abaixo das bananas.
Prontamente, o macaco mais faminto se aproxima da escada para pegar as bananas. Assim que ele começa a subir, os outros quatro macacos levam uma desagradabilíssima esguichada de água fria. Todo mundo atônito. Que porra foi essa?, pensam os macaquinhos.
Em seguida, outro macaco sobe o primeiro degrau da escada, e novamente os quatro restantes sofrem um Ice Bucket Challenge compulsório. E de novo. E de novo.
Após algumas repetições, o grupo de macacos aprende a relação dos fatos e coletivamente impede, por meio de força bruta, qualquer membro de tentar pegar as bananas. Subiu na escada, a bala vai cantar. Linchamentos começam a acontecer com quem tentar fazer gracinha. Válido, né? Tem que linchar mesmo. Água fria da porra.
Só que agora a coisa começa a ficar interessante. Um dos macacos foi substituído (igual a Avril Lavigne). O macaco novo ainda não conhece a regra da escada e imediatamente faz menção de subí-la, mas é impedido pelos demais. Apanhou sem nem saber a razão.
Logo depois, um segundo macaco é substituído. Ele também apanha de todos quando tenta pegar as bananas, inclusive do colega novato. Esse padrão se repete até que todos os macacos sejam substituídos.
Agora, ninguém que está na sala experienciou o banho gelado, mas todos impedem um ao outro de alcançar as bananas. Ninguém sabe o porquê, mas todo mundo lincha quem tentar subir a escada.
No contexto do que estamos discutindo, os gorilas com teclado se parecem com os macacos da escada porque também agem sem saber a razão por trás de suas ações. Seguem rigidamente o grupo e usam de violência contra quem sair da linha, mas não conseguem explicar a lógica da coisa.
Por que estamos atacando essa pessoa? Por que reprovamos esse comportamento? É realmente errado e merecedor de violência? Afinal, o que eu penso?
Já que estamos todos no Grande Grupo da internet, essas perguntas deveriam ecoar na cabeça de todo mundo o tempo todo pra que se mantenha uma convivência saudável. Acredito que muito do estresse na internet vem da dificuldade em questionar o próprio comportamento e seguir regras de convivência básicas.
Diante de um homem fazendo lasanha, ou uma filha ganhando sorvetes caros do pai, ou qualquer outro comportamento que possa ativar o gorila dentro de nós, precisamos dar uma pausa, analisar as nossas emoções e questionar o quanto o comportamento em questão é realmente nocivo. Talvez não seja. Talvez ele só seja constrangedor, feio, cringe. Talvez ele só contenha situações-chave que ativam seu gorila interno, mas se trate de um alarme falso.
É provável que todo mundo já tenha caído nessa, em maior ou menor frequência, em situações mais ou menos graves. Mas alerto que esse tipo de funcionamento, além de gerar violência injusta, é prato cheio pra seitas, coaches e outras pestes. Quem não pensa sozinho fica a mercê de um líder não-certificado e geralmente perverso. Quem não pensa sozinho deixa um influencer (derogatory) pensar no seu lugar, o que parece uma das piores coisas que pode acontecer com uma pessoa.
Aprender a pensar por si, entender as próprias pulsões e ter coragem de discordar do grupo e dos chefes são o melhor arsenal para evitar a cilada de entrar numa seita ou acabar com a vida de alguém por ter feito uma lasanha.
Cuidado. Se for dirigir reagir, não beba pondere.
P.S.: É muito insano que eu tenha que ter pesquisado “homem que fez lasanha twitter” pra escrever esse texto.
Eu estava com uma reflexão parecidissima com essa, só quee envolvendo o caso BaldonixLively quando percebi que uma youtuber que no qual eu acompanho a uns bons anos, só repete a narrativa que está rolando seja GomezxBaldwin ou seja lá a polemica do ano, tal qual um megafone de outro megafone, apenas repetindo palavra por palavra só que em tons diferentes, foi meio triste perceber isso, afinal essa youtuber em especifica foi a que eu utilizei pra treinar a esculta em ingles então sempre vai ter aquele carinho, porém percebi que esse tipo conteudo só faz você reagir e reagir com os mesmos fatos que já foram apresentados.
O email com assunto "Quem disse que moreno não pode fazer lasanha?" foi com certeza o que mais me deixou confuso até hoje.
Texto interessante !!